segunda-feira, 23 de março de 2020

Vírus

Dizem que foi o dia da poesia.
Dizem que foi dia do belo e da palavra.
Dizem que foi dia.

Mas, ó Deus, foi noite em brasa!
Foi o escuro, foi tormento!
Que esta guerra ninguém trava
sem um pingo de bravura,
paciência que dura
ou navalha que crava
... na pele e na alma.


Dizem que foi Primavera.
Dizem andorinhas e amarelos.
Diz-se nova Era.

Mas, foi sons de paralelos,
monstros internos
que gorgolejam zelos
silenciosos, de vendas
nos olhos dos outros.
Foi fúria, foram fendas
e rasgos, sós, soltos.


Dizem que foi dia,
mascara-se a eternidade.


Dizem-se alegria,
mas são somente metade
do bom senso
do comum normal mortal:
Tu, que és perpétuo mal,
confusamente fusco e tenso
na beleza da saudade
na firmeza da verdade

daqueles tempos longínquos,
em que realmente fora dia.

domingo, 6 de julho de 2014

Amanhecer

Matinalmente, exteriorizo-me
a mim e à minha consciência.

Eleva-se o odor de terra húmida
com tentáculos alpinistas
até os circuitos nervosos mais escondidos,
o que me faz reagir, fechar os olhos e inspirá-lo profundamente.

Jogo as mãos ao peito, olho em volta
e aprecio a clarosa desertidão que me rodeia:
as almas, se existentes, estarão em reunião
numa outra qualquer parte;
as máquinas, ruidosas, estarão mortas
pela noite que acabou de partir;
e os animais, esses, estarão escondidos
das trevas, prestes a prestar
a sua impercepção, alegre e inocentemente,
em passeios vespertinos e enérgicos.

Estou só.

E aproveito para devorar com os olhos
o que os restantes sentidos se limitam
a assimilar.

O verde da erva é mais verde.
O laranja dos céus é mais laranja
(todavia pincelado de um dourado radiante).
E o branco das paredes das casas é mais alto.

Contentada com a minha descoberta,
regresso.

E aproveito para me juntar a eles,
em uns gloriosos momentos finais
da sua ociosidade nocturna.

Deixo de estar só...
mas volto a ser comum.
E o branco das casas volta a ser como antes.



Quando chovem os olhos

Tenho o pensamento nublado
e o sol que se deleita no silêncio
da chuva e de ti.

Por ousadia
descobre-se um orvalho
que, tímido e nostálgico,
me leva a lânguidos passos pensativos,
de uma mente que vagueia por entre o teu sorriso, abraço, voz
e o exterior...
uma rua, lá fora, diferente da nossa
outra que não a que partilho contigo.
Diferente por distante.
E longínqua por me estranhar.

Quando chovem os olhos
tenho o pensamento nublado,
o coração a transbordar de geada
e o olhar brilhante por te ver
- por entre a chuva -
tão presente no arrepio que a saudade transporta
num gélido rasgar pelo interior mais profundo de mim.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Faz-me falta...

Faz-me falta o teu sorriso,
a tua cara serena de olhos pousados no sono
e respiração tépida de ventos sonhadores e amenos,
que trazem memórias de piratas em embarcações e pilhagens de outrora.

Faz-me falta o toque dos teus dedos de melodia, 
que se soltam em notas de piano, harpa e violino... 
combinados em sonetos de amor.

Faz-me falta a tua voz, 
de palavras ternas que me acariciam e me fazem pousar os olhos... 
para viajar para junto de ti em sonhos e sono encostado a ti.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Hoje

Hoje sou diferente,
a vida cresceu e abarca-me
em seus braços.

Detém-me sem prejuízo
com o carinho e os enlaços
de quem educa.


Hoje sou diferente
porque olho e vejo
o que repentinamente
surge e ensombra a água que estagna em poças
que nos molham os ossos e gelam o pensamento.
Hoje não sou tormento,
hoje sou diferente.

Hoje vivo.

Hoje sou diferente.

Hoje sinto.

Hoje vou com a corrente.
Porque hoje acato o castigo
de ter vivido descontente.

Porém, hoje sou diferente.
Porque hoje sou gente... sou gente, contigo.



quarta-feira, 25 de julho de 2012

Promíscuo

O branco do papel relembra-nos que já fomos originais.
O branco imaculado revela-nos que nos perdemos por nós.
O papel em que escreveríamos padece e deteriora-se perante o tempo da escrita inerte.
As cores do Mundo abstraem-se de mim e de todos... de necessidade de sublevar o branco à nódoa da sua imortalidade, á nódoa que o meu verso seria no poema da sociedade...

Uma simples palavra: um dizer em mutação e denegrido pela expressão escrita.

(Palavras? Não sei... serão palavras?)

É o Mundo e o que não nos rodeia é o tudo e o que se deseja pelo dinamismo de nós... pelo som do que não há, existindo.

Pelo grito da palavra que se perde na escuridão do som híbrido... da folha branca, promíscua.


quarta-feira, 28 de março de 2012



Os meus passos eram os teus passos... os teus medos eram também os meus e o meu sorriso era o teu olhar.


A minha alegria és tu e guardo-te comigo, dentro de mim para sempre: o teu olhar desperto, atento e meigo; o teu nariz frio que me acordou tantas vezes para se ir aquecer para debaixo dos lençóis, com toda uma gata atrás dele; a perseguição constante que me fazias pela casa e a tua descontracção de "quem faz de conta" que não me liga nenhuma e que é completamente autónoma, independente e auto suficiente mas afinal me olha com olhar de "mas, oh vá lá, dá-me uma saquetas daquelas que guardas ali!!" e que, depois da dita saqueta, se ia deitar mesmo no meu colo, não atrapalhando - em NADA - quem tenta trabalhar.
És a minha terrorista, foste companhia e representas tudo de bom que me aconteceu enquanto estiveste comigo. Por isso, descansa em paz! É tudo o que eu quero... que, pelo menos, descanses em paz.
à minha Sake.